Guilherme Caetano / Agência USP de Notícias
Não há necessidade em se criminalizar propaganda eleitoral mentirosa. O artigo 323 do Código Eleitoral brasileiro, que pune essa prática, é um dos únicos no mundo todo, e pode prejudicar mais do que beneficiar o eleitorado. A conclusão é de uma pesquisa do advogado Fernando Gaspar Neisser, da Faculdade de Direito (FD) da USP. O estudo de mestrado questiona a legitimidade da punição a campanhas políticas falsas, analisando o papel das eleições e da Justiça Eleitoral na democracia.
Para Neisser, nem mesmo a Justiça Eleitoral se sente segura para punir candidatos pelo crime de divulgação de fatos inverídicos na propaganda eleitoral. “Se aproximadamente sessenta anos de lei que criminaliza a mentira na propaganda eleitoral não foram suficientes para reduzir este expediente, talvez fosse o momento de desenvolver outras abordagens”, analisa.
O Direito Penal deve, então, ser aplicado com extrema parcimônia. É preciso assegurar que o conteúdo divulgado diz respeito a fatos, e não opiniões ou exageros publicitários. Do mesmo modo, não existe como punir promessas que no futuro são descumpridas, visto que a mentira há ainda de ser retrospectiva, ou seja, relativa a fatos passados.
Há ainda duas questões essenciais refletidas no estudo: a autocensura e o esfriamento do debate público. A primeira ocorre porque, existindo regulação e punição sobre o conteúdo daquilo que é comunicado, as pessoas se inibem de emitir alguma opinião, com medo de ser configurado o crime. E sobre a segunda questão, o advogado analisa que toda vez que há controle judicial de informação, tem-se um esfriamento do debate público, termo usado nos Estados Unidos como chilling effect. Menos assuntos são levados a público, resultando em menos informação ao eleitor.
Levantamento
Para a dissertação, foi necessária uma investigação sobre os estudos que tratam da influência da propaganda eleitoral na formação do voto do eleitor. Há três conceitos importantes para compreender o estudo de Neisser. São os efeitos: bandwagon, underdog e backslash.
O primeiro ocorre quando a pessoa que ouve uma propaganda de ataque empatiza com o ofensor e, portanto, é influenciada contra o ofendido. No segundo, acontece exatamente o oposto: o interlocutor da publicidade se sente próximo do ofendido, ficando contra o defensor. E o terceiro efeito é específico para o caso da publicidade falsa, e corresponde a uma ampliação do efeito underdog quando se descobre que determinada propaganda eleitoral é falsa.
Resultado
Neisser afirma que a legislação atual, criada em meados da década de 1950, é desnecessária, inviável e inoportuna. “Desnecessária por presumir que a propaganda eleitoral tem influência maior no eleitorado do que apontam os estudos na área”, considera. Neisser diz que a literatura mais atual reconhece que, apesar de haver certa influência, esta é muito menor do que intuitivamente se pensa. A propaganda de ataque, ofensiva ou falsa, permanece mais na memória do eleitor, mas não por isso tem maior capacidade de influência.
A inviabilidade da lei se dá em razão da dificuldade do Poder Judiciário em separar o que é mentira e o que é mera opinião ou exagero. Assim, apenas mentiras “escrachadas”, que o eleitor por si só já conseguiria captar, acabam sendo retidas na peneira do controle judicial. Aquelas promessas que compõem a zona cinzenta, e que são, em tese, as mais perigosas, acabam passando pelo controle.
E, enfim, o caráter inoportuno se refere às consequências que a lei traz à sociedade. Neisser acredita que, ao desincumbir o eleitor da tarefa que lhe cabe (separar a verdade da mentira na propaganda eleitoral), esse modelo “infantiliza” a sociedade. Desta forma, ao verificar que determinada publicidade foi retirada do ar por ser inverídica, o eleitor pode deduzir que todas as demais são verdadeiras. O advogado afirma que isso, obviamente, não corresponde à realidade. “As demais publicidades podem estar naquela zona cinzenta que a Justiça Eleitoral não consegue adentrar, mas recebem como que um selo de veracidade ao permanecerem no ar”, analisa.
Neisser também escreve que punir a falsidade importa, necessariamente, conhecer a verdade. A ideia de verdade e mentira, no entanto, beira uma discussão filosófica. Essa dificuldade na conceituação seria, ademais, outro empecilho para a aplicabilidade da lei. O tema é debatido historicamente, envolvendo teorias de Aristóteles a Habermas, passando por campos do conhecimento como ciências naturais, filosofia, ética e religião, nunca em consenso. “Se não se conseguiu chegar a uma conclusão sobre a verdade e a mentira em séculos de debate filosófico, o que levaria a crer que alguns juízes, por mais bem intencionados que sejam, conseguiriam?”, questiona o pesquisador.
Mais informações: email [email protected], com Fernando Gaspar Neisser
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