Aldrin Jonathan / Revista Espaço Aberto
Em toda e qualquer profissão ou carreira existem os notáveis, aqueles que são espelhos e referência para os que estão chegando agora. Na cirurgia médica brasileira, o nome de destaque é o de Angelita Habr-Gama. E não é difícil de reconhecer o fato, diante da quantidade de títulos e homenagens conquistadas pela professora titular da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).
São mais de 50 prêmios científicos nacionais ou internacionais. Membro honorário de oito associações mundiais, e também membro honorário de várias sociedades de Coloproctologia do Brasil, Chile, Paraguai e Equador. Exerceu a Presidência da Sociedade Brasileira e da Sociedade Latinoamericana de Coloproctologia e do Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva, além de inúmeras sociedades médicas. Em 2006, conquistou o Prêmio Forbes de Mulheres Mais Influentes do Brasil. Esse é um resumo do currículo de Angelita. Vasto é o número de premiações e de sociedades científicas da qual é presidente.
O mais novo prêmio que a docente ganhou veio da Faculdade de Medicina, com a qual Angelita mantém uma relação afetuosa: “ela representa para mim uma relação de amor e de respeito”, ressalta Angelita, que recebeu o Prêmio Personalidade de Destaque do Instituto do Câncer por seus estudos relacionados à prevenção do câncer colorretal. “Foi um trabalho que influenciou muito a mentalidade de grandes cirurgiões, e me orgulho muito desse prêmio”, avalia.
Em setembro, a docente também irá receber a titulação de membro honorário da Sociedade Internacional de Radioterapia, que apresenta apenas 30 associados no mundo, e não tem a presença de nenhum latino-americano, particularmente de nenhuma mulher. Mesmo com tantos títulos e honrarias, a docente mostra que continua a mesma menina esforçada que entrou na Faculdade de Medicina nos idos de 1952, ainda com 19 anos. “Esses títulos não mudaram nada na minha personalidade, não me considero mais importante do que ninguém. Tudo isso é fruto do meu trabalho, que me deu prazer a vida inteira. Eu sempre trabalhei por prazer, trabalhar nunca foi um sacrifício”.
Uma luta a cada dia
Filha de libaneses que vieram em busca de refúgio da guerra, Angelita nasceu na Ilha de Marajó, no Pará, e posteriormente se mudou para São Paulo. Sua família era modesta economicamente, mas com excelente bagagem cultural. “Tive uma sorte na vida: nasci em uma boa família, eram imigrantes cultos”, ressalta.
Desde pequena, Angelita implementa sua filosofia do dia-a-dia, e para isso lembra um poema de Ricardo Reis, heterônimo do grande poeta português Fernando Pessoa: “Sê todo em cada coisa. Põe quanto és […] No mínimo que fazes”. “Porque fazer as coisas pela metade não faz parte do meu temperamento. Este é o meu conceito: põe tudo de ti numa coisa bem pequenininha”, alerta a docente.
Fazer as coisas pela metade não faz parte do meu temperamento. Este é o meu conceito: põe tudo de ti numa coisa bem pequenininha.
Desde esta época, Angelita foi superando barreira por barreira. “A primeira foi passar no Colégio Caetano de Campos”, diz. A docente cursou o ginásio neste colégio e posteriormente seguiu para a Escola Estadual Presidente Roosevelt, onde fez parte do time de voleibol, que futuramente influenciaria uma grande escolha em sua vida. “Lá nós tivemos bons professores, naquela época os colégios públicos eram bons”, lembra.
Encontro com a Faculdade de Medicina
Diferentemente dos jovens que sonham em cursar medicina e tornar a Dr. Arnaldo a rua de sua segunda casa, Angelita não escolheu ser médica por vocação, tampouco teve influência de algum médico na família, por mais estranho que possa parecer. Angelita mostrava vocação para Ciências Biológicas, contudo não sabia se partia para Odontologia, magistério ou mesmo Medicina. Mas o time de vôlei da Presidente Roosevelt ajudou na escolha.
Por “coincidência”, uma boa parte das pessoas que faziam parte do time foram estudar na FMUSP e ela “foi no embalo”. “Fui, prestei vestibular e entrei, o que foi uma surpresa muito agradável. A partir daí minha família e eu nos entregamos à importância da Faculdade de Medicina”, conta.
Em 1952, Angelita entrou na USP para não deixá-la mais, fazendo sua residência em cirurgia e construindo toda a sua carreira na Universidade. “Eu escolhi bem, a Faculdade me encantou desde o momento em que eu entrei para fazer o vestibular”.
A relação com a FMUSP é tão forte que Angelita deixa claro que não a abandonará mesmo quando for estudar a anatomia celestial. “No dia em que eu morrer quero ser velada na FMUSP”, fala. Aliás, quem tem a chance de conversar com a cirurgiã percebe como é humilde e fiel ao que decidiu seguir como carreira: “enquanto tiver energia eu vou operar”, promete. E reconhece a importância da Faculdade em sua trajetória: “eu sou o que sou por causa da Faculdade de Medicina. Ela é um sustentáculo para o resto da vida”.
A cirurgia
Angelita sempre mostrou prazer em operar, desde o momento em que descobriu, quando era residente, que “levava jeito”. Naquela época, na década de 50, as mulheres enfrentavam algumas dificuldades para ingressar na universidade e também no prosseguimento da carreira: “geralmente iam para ginecologia, clínica ou obstetrícia, raramente para a área cirúrgica”, relata a docente. Angelita optou por fazer concurso para a residência em cirurgia e “não queriam aceitar porque na época mulher não ia para essa área”. Foi uma grande luta, lembra. Ela se tornou a primeira mulher cirurgiã da história da Universidade. “A cirurgia sempre foi muito disputada. Dediquei-me imensamente, fui uma residente aplicada. Trabalhava dia e noite, o que fosse necessário, trabalhei muito”, lembra.
Assim como Angelita é um exemplo para os aspirantes a médicos, ela lembra do professor com quem aprendeu muito: “Desde o começo eu aprendi a operar com um grande cirurgião, que completou 103 anos, professor Arrigo Raia, ele era um dos melhores cirurgiões que eu conheci em toda minha carreira”, reconhece.
Boa aluna, Angelita sempre conseguiu disponibilizar tempo para as atividades físicas. Depois do time de vôlei da Presidente Roosevelt, ela também entrou para o time da Faculdade de Medicina que ganhou campeonatos. Mais tarde, após a graduação, chegou a praticar tênis. Atualmente a cirurgiã faz pilates uma vez por semana e gosta de caminhar. “Sou uma boa andarilha”, brinca.
Mesmo com tantas tarefas, ela adora ir no cinema e ao teatro. “Nosso teatro melhorou muito”, comenta. Periodicamente assiste a concertos, sempre acompanhada de seu fiel escudeiro e marido, Joaquim Gama-Rodrigues, também formado pela FMUSP. Casados desde 1964, estão juntos há 50 anos. “Raro, não é mesmo?”, questiona. “Antigamente era comum, mas hoje as pessoas não enfrentam as dificuldades. Um relacionamento não é fácil, às vezes é preciso fazer concessões, mas viver sozinho não dá. Ter alguém que anda com a gente soma”.
Angelita e Joaquim optaram por não terem filhos. A cirurgiã achava que se os tivesse faria as coisas pela metade, o que não faz parte de seu temperamento. “Eu achei que se tivesse filhos iria cuidar das crianças mais ou menos e ser uma cirurgiã mais ou menos. Não ia dar certo”, conta. Sem filhos, os dois se tornaram o chamado casal 20 da Faculdade de Medicina.
Associação Brasileira de Prevenção de Câncer de Intestino
Angelita é presidente da ABRAPRECI, Associação Brasileira de Prevenção de Câncer de Intestino, tema sobre o qual por muito tempo se debruçou. A associação percorre o Brasil conscientizando a população sobre esse tipo de tumor. Segundo a professora, o câncer de intestino é muito comum, e “muito camarada”, porque é o único possível de ser prevenido, pois ele se manifesta como um pólipo, uma pequena verruga que vai crescendo. Em média são levados 10 anos até que esse corpo estranho se transforme num tumor. É possível detectar o pólipo por exames e retirá-lo, e é dessa forma que se previne o câncer.
A ABRAPRECI construiu um intestino gigante de cerca de 30 metros para a exibição pelo Brasil. Já foi de Manaus à Porto Alegre e passou até pelo Canadá. Angelita mostra-se incansável, confiante em seu trabalho. Quando perguntada se ela se considera espelho para nossa juventude, responde humilde: “Acho que sim. A juventude precisa entender que a gente vence com trabalho. O sucesso é 30% dom, vocação, inteligência – e 70% é suor e transpiração”, finaliza.
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