Leila Kiyomura / Jornal da USP
Uma foto em preto e branco de 1956 documenta a professora Maria Luiza Marcílio com suas alunas do segundo ano do antigo primário do Grupo Escolar José Carlos Dias, no bairro paulistano de Santana. As meninas estão de vestido branco, com laço de fita nos cabelos, e a professora está sentada bem ao centro.
É essa imagem muito bem guardada pela professora Maria Luiza Marcílio, hoje docente aposentada do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que registra o início de uma reconhecida trajetória no Brasil e no exterior. São quase seis décadas trabalhando pela educação e pelos direitos da criança brasileira. Com 18 livros, centenas de artigos e prêmios como o “Alceu Amoroso Lima de Direitos Humanos” e Menção Honrosa da 54ª International Conference of Americanists de Viena, ela foi empossada, no último dia 29, na Academia Paulista de Educação.
Nesta entrevista ao Jornal da USP, a professora faz questão de destacar a importância da educação de base: “Está na Constituição que a criança deve ser prioridade absoluta. O governo federal, estadual e especialmente municipal, a quem cabe tal responsabilidade, precisa investir na formação das crianças e também dos professores”. Ela reconhece avanços como a merenda escolar e o transporte gratuito, mas critica o sistema construtivista, criado pelo psicólogo suíço Jean Piaget, como um dos fatores que prejudicam a alfabetização. “As crianças chegam na quarta série sem o devido domínio da leitura e da escrita”, observa. A educação, segundo a professora, também é a base para a preservação do ambiente. “É preciso impedir a destruição dos recursos naturais. Hoje não resta mais do que 8% da mata atlântica.”
Jornal da USP – Como a senhora avalia a alfabetização brasileira?
Maria Luiza Marcílio – A meu ver, vários fatores vêm prejudicando a alfabetização. Em educação não se pode ter uma causa, mas a principal delas é a adoção do construtivismo, como é chamado no Brasil. Esse método, ou melhor, o sistema construtivista, que é o da psicogênese, de Piaget, foi vitorioso nos Estados Unidos e depois na França e na Inglaterra. Ocorre que esse método tem como um dos princípios deixar a criança independente e ela própria ir descobrindo sozinha a sua alfabetização. Ou seja, há momentos diferentes no aprendizado conforme cada criança. Algumas aprendem rapidamente e outras demoram mais.
JUSP – Nesse sistema, qual o papel do professor?
Maria Luiza – O professor foi colocado como uma figura à parte, uma figura que deveria respeitar e ficar calado diante das descobertas das crianças. Ele deixa, então, de ser uma autoridade, passa a ser quase um igual entre os alunos. Ele estimula o aluno a descobrir coisas, mas não deve interferir. Essas duas situações – a criança descobrir sozinha a alfabetização e o professor sem ação – levaram à conclusão de que a cartilha é um mal. A cartilha orienta e o aluno não deve ser orientado. Então a cartilha foi abolida literalmente do ensino oficial. Claro que teve exceções pelo Brasil afora. Nem todos obedeceram à determinação. Porém, nos Estados Unidos, os educadores perceberam que começou a haver um atraso na alfabetização. Nos anos 60 e 70 o governo incumbiu uma comissão de especialistas, com formações diferentes, de pesquisar o que estava acontecendo e essa comissão percebeu que os erros estavam no sistema construtivista. O governo decidiu, então, mesmo com o avanço da psicogênese, a volta do sistema fonético. Essa não era uma volta para trás, mas um ponto para a atualização. Com isso, a criança voltou a ser alfabetizada na idade certa, aos 7, 8 anos. Na França e na Inglaterra também perceberam as falhas no sistema construtivista.
JUSP – Além da morosidade na alfabetização, quais as outras falhas causadas pelo sistema construtivista?
Maria Luiza – O sistema construtivista passou a gerar indisciplina e falta de respeito ao professor. Hoje, tanto os Estados Unidos como a França e a Inglaterra voltaram a usar cartilhas. E o professor tem que estar na frente dos alunos e ser um orientador. Com isso, diminuiu a violência nas salas de aula e as crianças passaram a ser alfabetizadas aos 7 anos.
JUSP – E qual a deficiência do sistema construtivista no Brasil?
Maria Luiza – No Brasil, as crianças têm outras dificuldades. Nas zonas rurais, especialmente no sertão do Nordeste, as escolas ficam distantes. Não há transporte escolar, a criança anda quilômetros, chega suja e cansada em escolas mal estruturadas. Ainda existem pelo Brasil unidades feitas de lata, onde não há esgoto, água e merendas. Essas condições estruturais também dificultam o aprendizado. Outro problema é a crise de valores na escola pública brasileira, que gera revoltas, violência, falta de respeito. Valores que antes eram lembrados por leituras como as das fábulas de Esopo e de La Fontaine, que mostram o embate do bem e do mal. Ou então as histórias que começavam por “Era uma vez”, que enfatizam a preocupação com valores como solidariedade, justiça, amor e verdade.
JUSP – E qual a atitude do Ministério da Educação?
Maria Luiza – A imprensa apontou, recentemente, que o Ministério da Educação distribuiu livros com palavrões e cenas que estimulam a violência. Como é possível preparar um cidadão com esse tipo de orientação? Outra coisa. Tiraram a Música e as aulas de Educação Física. Importante lembrar que as aulas de Música valorizavam o folclore brasileiro e formaram uma geração criativa que adorava cantar com a professora ao piano. Uma iniciativa que, acredito, foi a base do sucesso da música popular brasileira. E isso tudo acabou. Também as aulas de Educação Física, instituídas no começo do século 20, que incentivavam o esporte, os torneios de um colégio contra o outro, propiciando uma disputa saudável, foram deixadas de lado. Através dessas aulas, a criança se preparava para os embates e sentia a importância da mente e do corpo sãos. Valores que foram suprimidos em nome do construtivismo. Não há a devida atenção dos governos municipal, estadual e federal para as escolas de base.
JUSP – Qual é o desafio do País para conseguir resultados positivos?
Maria Luiza – É preciso priorizar a criança. A educação de base é necessária, inclusive, para o desenvolvimento do País. Não se pode admitir uma sociedade pós-moderna que não saiba ler e escrever. A educação de base é importante inclusive para a consciência ambiental. A destruição das nossas florestas tem sido ininterrupta. Da mata atlântica, que era um conjunto único e prodigioso e que, em 1500, cobria 1,3 milhão de quilômetros quadrados, hoje só resta 8%.
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