Júlio Bernardes / Agência USP de Notícias
Os processos de socialização e formação que levaram trabalhadores da categoria metalúrgica a se tornarem diretores do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (SMABC), na Grande São Paulo, entre os anos de 1972 e 2002, são resgatados em pesquisa da Faculdade de Educação (FE) da USP. O estudo da professora Kimi Tomizaki constrói uma “biografia coletiva” dos sindicalistas do ABC e analisa suas trajetórias militantes e destinos sócio-políticos.
A atuação sindical na região do ABC, que mesmo durante o regime militar já demonstrava articulação com as bases da categoria, evoluiu, no final dos anos 1970, para um período de greves e confrontos em defesa das negociações diretas com as empresas sem interferência do Estado, a favor da liberdade sindical e do direito de greve. Na década de 1990, porém, a redução dos postos de trabalho conduziu o movimento sindical a privilegiar soluções negociadas com o patronato em detrimento das práticas de confronto, como greves.
Para melhor compreender as transformações ocorridas nas práticas sindicais no ABC Paulista, a professora ressalta que, apesar de receberem salários mais altos que a média dos trabalhadores brasileiros, os metalúrgicos do ABC foram muito prejudicados pela política salarial do regime militar (de 1964 a 1985), sofrendo significativa perda no poder de compra. “Ao mesmo tempo, havia a intensificação do ritmo e da extensão da jornada de trabalho, alta rotatividade no emprego e relações de trabalho caracterizadas pela humilhação e pela violência contra os trabalhadores seja no interior das fábricas ou diretamente contra o movimento operário, com a supressão do direito à greve e intervenções em sindicatos”, aponta.
“Esse quadro levaria às grandes greves do ABC entre 1978 e 1982 e a formação do ‘novo sindicalismo’, um modelo de ação sindical mais combativo”. De acordo com Kimi, na década de 1970, a perspectiva do trabalho sindical sofre profundas mudanças. “Ela vai de uma prática com certo nível de combatividade e buscando estreitar sua relação com a base representada, mas com pouca clareza do antagonismo de classes, até um segundo momento marcado pela tomada de consciência do protagonismo que a classe trabalhadora pode exercer na transformação da sociedade”, afirma a pesquisadora.
Segundo a professora, “os principais pilares de ação do ‘novo sindicalismo’ são a crítica radical aos mecanismos de atrelamento do sindicato ao Estado; a defesa do direito de greve e da negociação direta entre patrões e empregados, sem ingerência do Estado; a luta pela liberdade e autonomia sindical; e a organização dos trabalhadores nos locais de trabalho”.
Inflexão
Na década de 1980, acontece a consolidação das práticas do chamado “novo sindicalismo”, além de um intenso trabalho voltado à formação do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e à expansão e ampliação do projeto político dessas duas organizações, seja por meio da disputa de cargos eletivos, seja pela organização de chapas que disputaram a direção de outros sindicatos para compor a chamada “base cutista”.
A década de 1990, por sua vez,assistiu à reação da indústria metalúrgica do ABC que, em 1994, bateu recordes de produção, de produtividade e de vendas. “Isto não significou a eliminação do problema da redução de postos de trabalho, pois as empresas aumentaram a produtividade com redução do número de empregados, enquanto a população do ABC continuou a crescer”, destaca a professora.
A crise vivenciada pelo ABC, ampliou e alterou o escopo de atuação do sindicato, exigindo um leque maior de “perfis” e “habilidades” dos sindicalistas, bem como uma crescente exigência de maior escolaridade e domínio de línguas estrangeiras, devido ao maior investimento nas negociações com as empresas. “Os anos 1990 marcaram uma importante inflexão política no sindicato, o que não quer dizer que os conflitos e o recurso a práticas de confronto tenham deixado de existir, como demonstra a recente greve na Volkswagen pela readmissão de 800 metalúrgicos demitidos em dezembro de 2014”, lembra a pesquisadora.
A pesquisa, que busca compreender as trajetórias das lideranças desse importante sindicato, foi concebida como um estudo prosopográfico, seguido de um estudo biográfico. “De acordo com Christophe Charle, professor de história contemporânea na Universidade de Paris (França), a prosopografia busca revelar as características comuns de um determinado grupo social em um período histórico específico, por meio da coleta de seus dados biográficos”, afirma a professora. O estudo tem apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e a colaboração do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (SMABC) e a Associação dos Metalúrgicos Anistiados do ABC (AMAA).
Entre 2011 e 2013, 48 dos 102 diretores do SMABC, no período de 1972 a 2002, responderam um questionário, usado para formar um banco de dados sobre seus atributos sociais e culturais, além da revelar a dinâmica interna do grupo e sua atuação no movimento sindical. A partir dos questionários, foram selecionados 28 sindicalistas para entrevistas aprofundadas de caráter biográfico, com ênfase sobre sua trajetória política.
Escolarização
O banco de dados que resultou da pesquisa revela que o grupo pesquisado, sobretudo os diretores das décadas de 1970 e 1980, possui pouca diferenciação interna no que tange à sua origem social e posse de capitais escolares. “Os casos que destoam desse perfil estão todos reunidos nos anos 1990, na qual encontramos uma concentração de diretores que já se empregaram nas fábricas com um nível um pouco mais elevado de escolaridade e qualificação profissional”, diz Kimi. “No sentido contrário, há uma preponderância de infâncias absolutamente miseráveis e baixa escolaridade entre os diretores dos anos 1970, que chegaram a viver a experiência da fome prolongada, no período anterior à migração do campo para a cidade, em famílias com mais de uma dezena de filhos”.
A professora observa que a cada década é possível perceber um aumento de investimento dos depoentes em seus estudos, seja no período “regular” ou na retomada, já na idade adulta. “Essa tendência possivelmente guarda relação tanto com a expansão das oportunidades de acesso à escola, em função da ampliação do sistema de ensino no Brasil”, observa, “quanto com especificidades do próprio movimento sindical do ABC, que alterando suas práticas passou a necessitar de sindicalistas mais escolarizados que pudessem contribuir ativamente nas negociações com as empresas, por exemplo”.
Mais informações: email [email protected], com a professora Kimi Tomizaki
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