Em um certo exame de seleção e admissão realizado no Brasil, fiscais, supervisores e coordenadores recebem, durante seu treinamento, o “extrato de instruções orientadoras”. Trata-se de um livreto de 48 páginas que inclui recomendações bastante específicas. Aponta, por exemplo, a necessidade de que as fileiras de participantes sejam separadas por uma distância mínima de 90 centímetros. Entre as atribuições expressas dos fiscais, constam não só a verificação da condição de uso das mesas e cadeiras escolares, mas também a remoção de cartazes, tabelas ou relógios que estejam fixados nas paredes. Durante as provas, os aplicadores são orientados a coletar obrigatoriamente as impressões digitais dos candidatos e registrá-las individualmente nas folhas de respostas; essas, posteriormente, são rubricadas, para fins de autenticação, por dois supervisores.
Em outro exame de abrangência nacional, o “manual do chefe da sala e do aplicador” tem duas páginas. Dentre as atribuições do aplicador, destaca-se o item “verificar se o número de carteiras/participantes da sala é adequado e se as fileiras de carteiras não estão muito próximas” – o que representa adequação de quantidades e distâncias, nesse caso, é de livre interpretação individual, é claro. O documento também indica que a assinatura do candidato é o único mecanismo de autenticação da folha de respostas, e não há qualquer referência à necessidade de remoção de tabelas ou cartazes do ambiente de aplicação.
O exame de seleção citado no primeiro parágrafo faz parte do processo seletivo e admissional do curso de formação de sargentos da Aeronáutica.
O tema do segundo parágrafo é o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Em novembro de 2013, a UFRGS anunciou que oferecerá, a partir de 2015, 30% de suas vagas utilizando exclusivamente as notas do Enem. Não é segredo que, desde 2009, episódios graves relacionados à segurança do Enem e, consequentemente, à sua confiabilidade se tornaram rotina. Até agora, os problemas incluem o vazamento de questões, o cancelamento de provas, a inversão de cabeçalhos na folha de respostas e a recente eliminação de centenas de candidatos por suspeita de ação fraudulenta. As perspectivas futuras não são entusiasmantes: a lista de potenciais contratempos de um exame tão imenso parece ser diretamente proporcional aos seus mais de 7 milhões de inscritos anuais.
Os argumentos mais comuns utilizados por quem defende o fim do vestibular da UFRGS vão desde aqueles que, embora pareçam razoáveis, soam contraditórios em tempos de ações afirmativas (“a universidade é federal, e as vagas devem ser oferecidas a todos os brasileiros”) até os escandalosamente mentirosos (“85% dos aprovados no vestibular passado estariam no listão caso o Enem fosse o único critério de seleção”, o que só seria verdade se os candidatos continuassem a ser os mesmos antes e depois da mudança). A utilização das notas de um exame incipiente para selecionar os calouros da UFRGS ignora um histórico recente absolutamente sofrível e surpreende a todos pela velocidade com que está sendo proposta.
Entre os profissionais do mundo da segurança de informação, existe uma regra prática famosa: as falhas mais comprometedoras não costumam ter origem nos sistemas em si, mas sim na imprevisibilidade do comportamento das pessoas que os utilizam. Logo, quanto mais participantes, maior o potencial comprometimento da confiabilidade do processo. É ingenuidade acreditar que os problemas do Enem desaparecerão à medida em que as aplicações se sucederem – pelo contrário, o mais provável é que eles se tornem cada vez mais frequentes, mais fragmentados e, portanto, de detecção cada vez mais difícil.
Considerando a decisão recentemente anunciada, é uma pena que estejamos diante de tantos indícios de escassez de bom senso.